No mundo em transição para uma economia de baixo carbono, o hidrogênio verde, também chamado de H2V, é considerado indispensável para que o setor industrial consiga diminuir suas emissões dos gases do efeito estufa – principalmente nos setores de difícil abatimento de carbono, como aço, cimento e transporte marítimo. Mas há barreiras a superar, como custos maiores de produção em relação ao hidrogênio tradicional, estrutura, transporte, aumento da capacidade de geração de eletricidade do país e, principalmente, haver garantia de compra para o produto, para cruzar a linha de chegada para um cenário de aproveitamento efetivo de oportunidades que podem render de US$ 15 bilhões a US$ 20 bilhões para o país em 2040, de acordo com estimativas da consultoria McKinsey.
“O principal ponto que vai destravar o hidrogênio pode ser um leilão, como a Europa vai fazer, ou uma grande organização privada que decida usar o H2V na sua operação e faça um contrato de 10, 15, 20 anos com um fornecedor”, diz João Guillaumon, sócio da McKinsey, que possui estudo sobre as oportunidades do hidrogênio verde. “Se há demanda, há como financiar, contratar equipamentos e começar a fazer o projeto.”
A largada nesse sentido está começando. A White Martins iniciou a produção de H2V em Pernambuco, com certificação feita pela agência alemã TÜV Rheinland. A planta tem capacidade para fornecer 156 toneladas por ano. “Precisamos começar a fazer alguma coisa, porque, assim como todos os mercados novos, o H2V só começa a ganhar competitividade com escala”, diz Gilney Bastos, presidente da White Martins e da Linde na América do Sul. A empresa adaptou uma planta que já produzia hidrogênio. Bastos não revela o valor investido, mas sentencia: “É o mercado interno que vai dar escala”.
O estudo da McKinsey estima que do potencial de até US$ 20 bilhões, de US$ 10 bilhões a US$ 12 bilhões venha do mercado interno e de US$ 4 bilhões a US$ 6 bilhões de exportações de derivados de H2V para Europa e Estados Unidos. Mas, se o ganho maior deve vir do mercado interno, é o mercado externo que faz brilhar os olhos de quem pensa em investir no segmento. Países responsáveis por mais de 95% do Produto Interno Bruto (PIB) global têm metas de neutralidade de carbono e precisarão de alternativas menos poluentes e o H2V tem papel crucial para alcançarem suas metas.
A União Europeia promete emissão zero de CO2 até 2050, para atender aos objetivos do Acordo de Paris e, já em 2030, reduzir as emissões em pelo menos 55%. Para atingir essas marcas, a Alemanha dedicou 9 bilhões de euros para sua estratégia de hidrogênio verde, sendo 7 bilhões de euros para o mercado interno e 2 bilhões para o mercado externo.
Ansgar Pinkowiski, gerente de Inovação, Energia e Sustentabilidade da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha do Rio de Janeiro (AHK Rio) e membro da Aliança Brasil-Alemanha para o Hidrogênio Verde, lembra que, por questões geográficas e climáticas, a Alemanha só vai conseguir gerar cerca de 10% de H2V em 2050. “Ou seja, 90% precisarão ser importados”, afirma ele.
Especialistas dizem que se o Brasil aproveitar suas potencialidades, como abundância de energia elétrica limpa, pode se transformar em um grande fornecedor global de hidrogênio verde embarcado, isto é, exportando produtos feitos com uso de H2V, como aço verde. O país deixaria de ser um mero exportador de commodities e usaria o H2V para agregar valor a produtos industriais.
Todo esse panorama está por trás das iniciativas em desenvolvimento no Brasil, como memorandos de entendimento sendo assinados e Estados se posicionando para se tornarem polos de fabricação e exportação do produto. A EDP já produziu sua primeira molécula de H2V na unidade de São Gonçalo do Amarante (CE), e a Thyssenkrupp, fechou contrato com a Unigel, de fertilizantes nitrogenados, para o fornecimento da tecnologia de eletrólise – que captura do hidrogênio verde.
“A planta, que estará no Polo Industrial de Camaçari (BA), terá investimento inicial de US$ 120 milhões e deve ser entregue até do ano”, diz Paulo Alvarenga, CEO da Thyssenkrupp para a América do Sul. Na primeira fase, a capacidade de produção será de 10 mil toneladas por ano de H2V e de 60 mil toneladas/ano de amônia verde.
No entanto, a McKinsey prevê que, para o país ter acesso a todas as oportunidades serão necessários investimentos da ordem de US$ 200 bilhões até 2040 em toda a cadeia: geração de eletricidade, linhas de transmissão, produção de hidrogênio e estrutura associada, como terminais portuários, dutos e armazenagem.
Sócia do escritório de advocacia Trench Rossi Watanabe, que cobre o cenário regulatório e de investimentos em H2V, Danielle Valois diz que a tecnologia já está sendo barateada. “Há redução de custos de produção de energias renováveis e investimento em P&D para. Tudo está acontecendo mais rápido do que se imaginava, porque há empresas grandes colocando o processo em andamento. E agora vai haver dinheiro, que é o que falta”, diz ela, referindo-se à concorrência global feita pela Alemanha para comprar amônia verde.
Na busca por tecnologias que possam deixar o H2V mais competitivo, a CSN comprou, há um ano, participação na startup israelense H2Pro e, depois juntou à startup portuguesa Ultimate Technology to Industrial Savings (UTIS). O foco é desenvolver técnicas mais eficientes para fazer a eletrólise, o procedimento necessário para a quebra de molécula de água e obtenção do hidrogênio do oxigênio, mas também criar soluções para adequar seu parque industrial.
O grupo CSN, que em 2021 emitiu 12,2 milhões de toneladas de gás carbônico equivalente, segundo a metodologia do GHG Protocol, tem metas de redução de emissões em diversas áreas. Na siderurgia, o objetivo é cortá-las em 20% até 2035, em relação a 2018. Em cimentos, a busca é por menos 28% até 2030 face a 2020. Na CSN Mineração (CMIN), empresa de capital aberto que produz minério de ferro, a meta é redução de 30% até 2035 em relação a 2019. O grupo ressalta que, em suas rotas de descarbonização, os três segmentos consideram o H2V.
Uma pedra no caminho da viabilização comercial do produto, segundo especialistas, é o transporte do produto, principalmente quando se pensa em exportação. “Como ele é um gás muito volátil, muito leve, comprimi-lo não é a forma ideal, porque perde densidade energética”, diz Pinkowiski, da Câmara Brasil-Alemanha do Rio. Uma das soluções é transformar o H2V em amônia. “Já existe infraestrutura e tecnologia para transportar. No local do consumo, se extrai o hidrogênio ou se usa a própria amônia”, afirma. Mas acarreta um custo a mais.
Uma alternativa está em desenvolvimento por meio da associação entre Shell, Raízen, Hytron e Universidade de São Paulo (USP). A ideia é usar etanol para a produção de H2V no local onde será usado. Isso seria possível com um equipamento chamado reformador, produzido pela Hytron e que deverá ter o tamanho de um contêiner. O modelo será testado em um posto de abastecimento a ser instalado na USP e que abastecerá quatro ônibus que circulam pela Cidade Universitária – deverá entrar em operação até o fim deste ano. O equipamento vai produzir 5 kg por hora de hidrogênio. Após a entrega da máquina da USP, outra será feita com capacidade de produzir 50 kg/h e, depois, uma terceira deverá obter 500 kg/h.
O objetivo vai além. “Queremos colocar o etanol na rota global de distribuição do hidrogênio verde”, afirma Daniel Lopes, fundador e diretor comercial da Hytron, empresa brasileira do grupo alemão NEA. O posto, portanto, funcionará como vitrine para testar o produto em um ambiente controlado.
No ano seguinte, a máquina de 50 kg será instalada em uma indústria para que o H2V seja usado em uma aplicação real. “Pretendemos que, ao final de 36 meses, a partir da metade de 2022, já tenhamos um cliente em uma região portuária em que poderemos chegar com um navio de etanol e produzir o hidrogênio localmente e distribuí-lo”, diz Lopes.
Outra possibilidade seria o transporte de um mix de gás natural e hidrogênio em gasodutos como forma de acelerar o processo de descarbonização. “É o que já está sendo feito na Europa, e que chamam de blending. Consiste em utilizar a infraestrutura já existente de gasodutos, de transporte e distribuição, e injetar gás natural com percentuais de hidrogênio verde para que esse gás, que está abastecendo casas e indústrias seja gradativamente menos poluente”, diz Gabriela Fischer, associada sênior do Trench Rossi Watanabe.
A medida é considerada uma solução de curto prazo, mas criaria demanda para o H2V num primeiro momento, ajudando a alavancar projetos. Já se sabe que serão necessários ajustes para poder usar a mesma infraestrutura, já que o hidrogênio é mais leve e inflamável, mas não haveria necessidade de grandes investimentos na construção de novos gasodutos.
Há, porém, a necessidade de regulamentação em relação ao papel da Agência Nacional de Petróleo (ANP). Ela só tem competência para regular o transporte de gás natural de origem fóssil e autorizar e contratar atividades da sua cadeia. A ideia é mudar a lei e acrescentar as atividade de hidrogênio às competências da ANP. O ideal, diz Fischer, seria a agência aproveitar que está sendo demandada a regular o novo mercado de gás, conforme a nova lei do gás, e já abrir margem para o mix hidrogênio-gás nos gasodutos.
Pinkowiski lembra que, enquanto muitos países já têm suas estratégias, o Brasil ainda discute a formação do grupo de trabalho. Se o governo não mostrar onde vai atuar, diz ele, o desenvolvimento por aqui será muito lento. E a janela de oportunidades poderá se fechar definitivamente.
Fonte: Valor Econômico